TEXTOS


MOVIMENTO À TECNOLOGIA

2023

Texto realizado para sobre a obra homônima do artista Natan Dias para o catálogo do Parque Cultural Casa do Governador, Vila Velha, Brasil, local onde o trabalho está permanentemente exposto.

Foto: Clara Sampaio, fotografia 35mm pb, 2023.

Movimento à Tecnologia,
obra do artista Natan Dias, surge a partir da observação da cidade, seus habitantes e trânsitos, que parecem desenhar cortes na paisagem. Com um corpo de trabalho baseado na investigação sobre a tradição e o comportamento do ferro, as várias vertentes da palavra tecnologia e a importância da teimosia; o artista reflete nesta (e em outras experiências) sobre os apagamentos institucionais e temporais que se conectam com sua origem familiar e ancestral. Os lábios da sabedoria estão fechados, exceto aos ouvidos do entendimento (1).

A ideia de movimento contradiz aquela do monumento tradicional, coisa estanque, celebratória de um tempo que passou; e se aproxima mais ao monumento de Walter Benjamin (2), documento vivo de memória viva; de lutas e contradições. Do Bairro do Teimoso, nome original da região onde sua família criou raízes, o artista tem desenvolvido uma pesquisa que entrelaça matéria e memória: obstinação em reconstruir o que por vezes é desmanchado pelas autoridades, recriar como ferramenta de sobrevivência. Trata-se, portanto, da materialização de um esforço que ele considera desobediente, insistente, que envolve uma série de estudos, tentativas e erros: movimento.

não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não / lamentando o eterno movimento dos barcos (3).

O gesto de ir e vir do facão teimoso, o fogo que corta o ferro, os imensos corpos metálicos que se deslocam na baía. Esses conceitos plásticos motivam a forma da obra, realizada a partir de estudos em volumetria e prototipagem. O objeto pousa sobre a formação rochosa do parque, em uma altura que permite sua visualização à distância. Olha para a paisagem e é visto, porque são dois lados da mesma viagem (4).

Pousa leve sobre a matéria bruta o corpo pesado forjado no fogo; descansa, se une ao mineral que o sustenta. Conecta essas histórias com a terra, num fluxo contínuo de energia, que é o que faz tudo ser possível e uno: o que está embaixo, (que) é como o que está no alto; e o que está no alto, é como o que está embaixo, ele escreveu (5).



  1. Hermes Trismegisto (circa 1330 AEC) figura lendária do Egito, individual ou coletiva, considerada uma das fundadoras da Alquimia e responsável pela criação de conjunto de textos como o Corpus Hermeticum, o Caibalion e os princípios dogmáticos encontrados na Tábua de Esmeralda, que inspiraram o álbum homônimo de Jorge Ben Jor, a física quântica e filosofia moderna.
  2. Walter Benjamin, como apresentado em suas teses sobre a História ( “On the Concept of History.” In: Benjamin, Walter. Selected Writings, v.4, 1938-1940. Traduzido por Edmund Jephcott e outros.Cambridge, Massachusetts and London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2003: 391-392).
  3. Jards Macalé e Capinam, Movimento dos Barcos. (Álbum Let’s Play That, Philips, 1972)
  4. Milton Nascimento, Encontros e despedidas. (Álbum Encontros e despedidas, Barclay, 1985)Jorge Ben Jor, sobre a filosofia alquimista em Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda (Álbum Tábua de Esmeralda, Philips, 1974)




OBSERVAR TERRITÓRIOS

2022

Texto realizado para a exposição Observar Territórios, dos artistas Aline Moreno e Manoel Novello, com organização de Thais Hilal, na OÁ Galeria, Março de 2022.

A exposição Observar Territórios celebra os quinze anos da OÁ Galeria - arte contemporânea unindo, pela primeira vez, as pesquisas poéticas de Aline Moreno e Manoel Novello.

Cada artista desenha, à sua maneira, uma espécie de interface com o que está ao seu redor. Nesse exercício de representação, de simulacro, imaginar é imagear; é criar realidades outras: não como fuga, mas como utopia, importante exercício de esperançar manifesto na fragilidade do nosso tempo. Onde queremos estar daqui quinze anos? Como serão nossos territórios?

De um lado da galeria, percorremos, com Manoel Novello, a cidade, essa pulsão animada de vida, lugar onde os encontros são tecidos e os desejos entrelaçados. O artista observa e descreve com minúcia essa paisagem que lhe é próxima. Construída pela mão humana, é ao mesmo tempo natural e artificial, tem tanto da velocidade do progresso quanto do esmero ao detalhe, do acabamento. Parece que vamos caminhando com ele, ao reconhecer nas geometrias apresentadas, fragmentos de construções. Mas o artista se debruça menos sobre a vertigem da cidade e mais sobre a flor drummondiana, que resistindo às contradições da vida bruta e concreta, insiste em nascer e florir. Essa força que brota, insistente, na tela, acumula camadas e se repete sobre a superfície, cobrindo de tinta e criando volume. Recebe, finalmente, um gesto do artista, que feito corte, faz irradiar luz (esperança?) desafiando a perspectiva ótica.

Do outro lado, com Aline Moreno, vamos mais alto e contemplamos o silêncio da paisagem, esquecemos por hora os deslocamentos na cidade. Nessa outra forma de percorrer o território, com o sobrevôo de lugares desconhecidos, vemos sombras e linhas sinuosas desenharem contornos que indicam massas e altitudes. Apertamos o olho, forçamos a memória: as montanhas são estranhamente familiares. A artista faz repetir então essa coleção de imagens que se apresentam fragmentadas. Ora também propõe cortar, criando planos que seccionam montanhas; ora nos apresenta uma série de relevos lado a lado, como para expandir um “sentimento de paisagem”. Em um pêndulo entre a realidade e a ficção, explora as várias qualidades materiais que a virtualidade e a fisicalidade trazem à imagem, dotando-as de dimensão, textura e corpo.

Cada artista desenha, à sua maneira, uma espécie de interface com o que está ao seu redor. Nesse exercício de representação, de simulacro, imaginar é imagear; é criar realidades outras: não como fuga, mas como utopia, importante exercício de esperançar manifesto na fragilidade do nosso tempo. Onde queremos estar daqui quinze anos? Como serão nossos territórios?

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OUTRA MARGEM

2021

Uma pedra é lançada em um remanso, rompendo a tranquilidade do espelho do céu.

O gesto provoca uma turbulência na água, inscrevendo nela círculos concêntricos que vão lentamente se multiplicando e se desfazendo. Em poucos segundos, o que era perturbação volta a ser o que era antes. Mas volta mesmo?

O projeto Outra Margem é disparado pelo entorno da Casa Tutti, no Centro de Vitória, e leva em consideração sua paisagem circundante, seu contexto histórico e sociocultural, para se expandir para outras partes da cidade. Durante o período de residência, entre um formato on-line e off-line, e muitas reuniões, nos propusemos, em plena pandemia, a perturbar margens e criar outros centros. Cada artista traz para a discussão sua visão de cidade, permitindo que renovemos o olhar sobre nossos caminhos cotidianos, a redescoberta de percursos e a descoberta de estórias.

Trabalhando em assuntos que gravitam ao redor dos processos de evolução urbana, como migrações, gentrificação e a criação e extinção de profissões, com a consequente substituição de manufaturas pela fabricação industrial, o projeto ambicionou criar um espaço livre de investigação: não acadêmico e colaborativo, baseado em processos práticos de elaboração de pensamento.

Entendendo a residência como ambiente imersivo, os artistas participam e constroem uma investigação situada, isto é, vivenciam ativamente a experiência de residir, trabalhando e experimentando no/o contexto que pesquisam.

É assim que as artistas Joana Quiroga (ES), Kika Carvalho (ES), Luana Vitra (MG) e Tetê Rocha (ES/SP), além do artista Natan Dias (ES), colaboram para a criação de alternativas à ideia simbólica de “centro”. Joana se (re)aproxima de Seu Pedro; Kika estabelece uma parceria de trabalho com Peu Walcher; Luana vem descobrir as histórias de Vitória junto com o pescador Sonhador Portela e o artista Rafael Segatto; Tetê chama o amigo e artista Vitor Monteiro para estabelecer uma troca entre processos criativos; e Natan convida sua avó, Joana Dias, como forma de resgate oral de sua participação na formação do bairro Bonfim.

Materializam suas investigações nesta publicação, em textos, ações, objetos e instalações em que afirmam o sujeito no centro da discussão. Esse documento, um fragmento de um todo, é um desenho coletivo que fizemos a muitas mãos.

Apostando na construção de conhecimento múltipla e transversal, que deve vir tanto de contextos mais ou menos formais, vivenciamos uma programação intensa de visitas na cidade. São locais que, entendemos, são fonte de informações e experiências importantes para compreender as discussões que mencionamos anteriormente. Ao mesmo tempo, com suporte das arquitetas urbanistas convidadas, trocamos experiências e olhares sobre políticas públicas e o desenho da cidade.

Quisemos, com isso, debater as várias possibilidades de estar à margem, tanto do ponto de vista democrático, no que diz respeito à participação efetiva de determinados grupos sociais na cidade, quanto do ponto de vista geográfico, ao fazer emergir saberes, histórias e pessoas, em contextos fora do centro urbano mais estabelecido.

Tendo em vista o cenário de contingências que nos impõe a pandemia do Covid-19, a residência aconteceu em um ambiente de cuidado e atenção com o outro, nos tempos e condições possíveis que esse novo mundo nos tem apresentado. Outra Margem nos mostrou a importância de jogar pedrinhas na água; sair do centro para dar a volta à ilha, afetar sempre que possível o que parece que está dado; que a história é feita de narrativas com muitas vozes, e a memória é construída a cada dia.



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TIRANTE

2021

O projeto Tirante tem sua motivação no próprio edifício do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio del Santo – Maes, localizado em Vitória. A experiência da obra civil do Maes, realizada em parceria com a Arq. Mirella Schena, entre 2016-2017, é um duplo privilégio: descobrir suas características originais e particularidades para propor um novo espaço, este que agora podemos ocupar, mesmo que virtualmente.

Em 2018, com a possibilidade de voltar ao museu, idealizamos uma exposição que refletisse sobre práticas contemporâneas em trânsito. Fomos nos cercando de pessoas que também habitassem lugares híbridos em suas poéticas, movendo-se entre a arte e a arquitetura. O título do projeto recorre à definição arquitetônica: um elemento tênue, que sozinho ou combinado a outros, tensiona ao mesmo tempo que sustenta estruturas.

Foi assim que desenhamos um projeto que atrelado ao seu edifício-índice trazia também reflexões sobre outros lugares: Raquel Garbelotti aborda a presença inconteste do minério de ferro no cotidiano dos capixabas narrando a invasão silenciosa do pó na casa da própria artista, ali mostrada em escala (Wind Fence (2017)); Anton Steenbock apresentaria entre maquetes e vídeos sua incursão sobre o polêmico mercado imobiliário e suas tendências estéticas, que desafiam planos diretores urbanos e o bom senso, em uma batalha perversa entre o capital e a sociedade civil; Felippe Moraes criaria, para a exposição, diversas maquetes de projetos já realizados, como o Monumento ao Horizonte (2016), além de estudos para projetos futuros (Declamação ao Horizonte (2017) e Torre do Silêncio (2018)), inclusive concretizando ali propostas que possivelmente não seriam executadas por sua complexidade. Com a experiência da obra civil ainda muito presente, trabalhei, entre outras coisas, em uma intervenção no piso do museu, que ao marcar as paredes movidas ou retiradas, se apresentaria como uma espécie de escala real de Demolir/Construir (etapa que integra comumente um projeto de reforma).

Passados dois anos, como é de se esperar, os trabalhos se transformaram. Reconfigurados ao ambiente virtual, ganham agora a companhia de novos trabalhos, além de textos e imagens. Trazem consigo um pouco da realidade caseira que nos foi imposta durante a pandemia do Covid-19, sendo as propostas inéditas todas produzidas a partir do lar de cada artista, e em alguns casos inclusive incorporando esse universo (sua arquitetura, seus ruídos e materiais).

Finalmente, o projeto recebe as contribuições de mais dois artistas: Marcelo Venzon, que em sua prática lida com as representações estéticas da arquitetura; em instalações que se camuflam às tentativas de simulação de texturas e materiais naturais em revestimentos como o porcelanato, a cerâmica e o adesivo; e Fredone Fone, que em sua incursão pela urbe, é tanto um observador atento como um propositor de situações, trazendo de forma crítica a construção da paisagem urbana da periferia para o centro de sua produção. Ambos desenham projetos inéditos, um para refletir sobre o desvarios do mercado imobiliário no Espírito Santo, mais precisamente por meio da construção de um edifício-resort, cuja magnitude tem impacto não só social como ambiental (Itaparica Beach Resort, 2021); e outro para pensar a arquitetura e o urbanismo por meio de um procedimento de decupagem, buscando entender o que produz uma cidade na vivência de quem não está de fato no radar das decisões políticas; as mesmas mãos que conhecem o concreto manipulam agora fitas cassetes e um gravador caseiro, áudios que somados a um texto e vídeo (Sobre a laje, 2021) buscam a criação de uma espacialidade, uma morada segura, como nos comentou o artista.

A exposição de 2018, não realizada por motivos de força maior, dá-se agora como imagem. Não existe menos porque não foi executada ou vivida, mas sobrevive como registro e gera outra, que por acaso ou por destino, cresceu em complexidade e ações. Após muitas negociações, surge o projeto atual, que é composto também por uma equipe de educação, Lindomberto Alves e Amanda Amaral, e as valiosas contribuições e reflexões de Gabriela Leandro Pereira, Mauro Neri, Ricardo Basbaum, Juan Gonçalves, Rebeca Ribeiro e Thiara Pagani.

É assim que, entendendo o museu como programa, o projeto habita o Maes, irrompe sua arquitetura física para ganhar o espaço online na forma de tirante.org. Como plataforma, a exposição quer mesmo ser um artifício de passagem de um lugar a outro e aposta por uma mediação expandida com seus espectadores. Neste ambiente, cada artista cria seu espaço de intervenção e pensamento, e o público é convidado a navegar livremente, a procurar elementos escondidos, visitar e retornar quantas vezes quiserem aos trabalhos. Assim, Tirante não é uma versão online de uma exposição que seria física, é um novo projeto que pretende ancorar no virtual essa possibilidade de site (lugar) discursivo.

Tirante tem a intenção de sobreviver às constrições da pandemia, ao distanciamento, ao horário comercial, conviver com várias outras abas e assuntos (outras exposições?) e ter uma duração que extrapole o calendário institucional. Sua produção inteiramente à distância oportunizou a conexão entre Brasil, Portugal, Alemanha e Bélgica, países onde hoje se encontram as/os artistas participantes. Nosso programa público, intitulado Espera, também este um elemento arquitetônico, partilha da expectativa que uma exposição torna-se, estabelece-se de fato, a partir do relacionamento com o outro. É também um convite para proposições e diálogos, apresentando-se na forma de ações a serem divulgadas no site, nas redes sociais do projeto e nesta publicação.

Projeto︎︎




SINAL DE ossain

2021

Texto realizado para o catálogo da exposição Eledá do artista Felippe Moraes (2021)


Foto: Felippe Moraes, Eledá, 2021

Em boa parte de seus trabalhos anteriores, Felippe Moraes se debruça sobre o universo concreto e exato da Matemática e da Física. Ao contrário do que poderia inspirar a precisão dos números e das fórmulas, o artista revela o assombro quase místico provocado por esses campos, desenhados e motivados, é importante lembrar, a partir da observação do cosmos, da natureza e do ser humano.

Se antes pouco se via da imagem do artista nos trabalhos, com Eledá, ele se põe para jogo, protagoniza experiências que trilham uma investigação sobre o corpo uno, conectado entre planos visíveis e invisíveis. Contudo, não há nada de abstrato nisso: é com esse e outros trabalhos da série que demonstra que a espiritualidade é um lugar de profundo conhecimento e pesquisa.

Em meio à exuberância da Mata Atlântica irrompe um gesto. E é no silêncio que supõe a fotografia, nesse suposto silêncio da mata, que duas mãos se abrem, firmemente postas como uma coroa, criando um espaço dentro de outro. O gesto, que alude à lança de sete pontas, símbolo de Ossain, pode ser lido também como um convite. A palma da mão que oculta uma constelação de nervos e ossos, viva, aberta e poderosa, se oferece ao observador como um mapa do passado e do futuro.

Na tradição do Candomblé, Ossain é quem vibra o poder da Terra, comunicando os saberes ocultos através da pele da natureza, suas cascas e folhas. É conhecido por sua observação atenta, por mapear e guardar os segredos terapêuticos e curativos contidos no interior desses elementos.

Vivemos um momento de fragmentação radical entre o corpo físico e o espiritual. A maioria de nós existe aos solavancos, medicando o corpo num funcionamento frenético e artificial. O urgente mergulho na mata é um chamado para essa reconexão, para outras formas de entendimento do mundo, por meio de conhecimentos ancestrais que, preservados à revelia da violência do tempo e da humanidade, sobrevivem, pulsam, abrem outros caminhos.

Mais informações:
Felippe Moraes︎︎

ENTRE NÓS


2019 e 2021


Entre Nós é um projeto de residências que se constrói a partir de uma investigação da experiência do viver. Cada residente que chega ao projeto pouco pode prever o que acontecerá em sua estada.

Na relação que desenvolverá com o lugar e com seus habitantes, é o próprio lugar, em seus contextos espaciais e temporais, que devolve a ele ou a ela suas questões; que chama à atenção; à presença, à escuta, que apresenta novos códigos e desafios; e tenta perturba o hermetismo que por vezes acomete a arte contemporânea.

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Lisbon (PT), Vitória (BRA)